O primeiro plano de “X – A Marca da Morte” é o do campo de uma fazenda com uma casa ao fundo, ambos ocupando o centro do enquadramento. A princípio, as laterais escuras do quadro parecem indicar que a proporção de tela utilizada pelo diretor Ti West é, de fato, quadrada, como acontecia nos filmes das primeiras décadas do cinema ou em filmagens amadoras, quando as câmeras de uso caseiro começaram a se popularizar. O que realmente acontece é que a cena é enquadrada de dentro do batente de uma porta. E as paredes laterais, sem iluminação, criam o plano que parece quadrado. Com um movimento para a frente, as paredes passam pelos lados do plano, que se abre numa proporção de tela mais comuns aos filmes atuais.
Logo de cara, West sinaliza o contraste que vai tomar toda a primeira metade, se não o filme inteiro, de “X”. O formato quadrado é utilizado pelos protagonistas, uma equipe que viaja até uma fazenda para filmar um pornô de baixo orçamento. Durante a projeção, diversas vezes temos a visão de uma (aparentemente) câmera de 16mm nas cenas do pornô, o filme dentro do filme. Enquanto os bastidores das gravações, e principalmente o contato da equipe com os idosos donos da fazenda, são filmados na proporção “comum” para o público atual. Ou seja, o contraste entre os jovens, bonitos, sexuais, e os velhinhos, decrépitos. Essa relação é reforçada pela montagem, que na primeira metade seguidamente contrapõe os hábitos sexualizados dos jovens com a melancolia dos idosos.
O que Ti West faz é colocar como mote narrativo o que era apenas subtexto na maioria dos slashers – e “X” é um slasher até bem convencional. É conhecida a teoria das “final girls” que diz que, num filme como este, a sobrevivente é sempre uma garota virginal, enquanto qualquer sinal de sexualidade é punido com a morte. Tentando não cair em muitos spoilers, os assassinatos em “X” são cometidos em contraponto ao (e como forma de) ato sexual. Enquanto o grupo de jovens faz sexo e usa drogas, o êxtase do algoz vem a partir dos assassinatos, como demonstra a cena em que, após uma morte, a pessoa que cometeu o crime dança ao lado do corpo, com a luz avermelhada por causa de tanto sangue. Também os objetos usados para matar são fálicos, como de comum no slasher: uma faca, um prego (até um jacaré é um predador quase sexual para uma garota que se banha nua em um lago).
O slasher é um dos subgêneros mais conhecidos do terror, que pode ser resumido como os filmes em que assassinos matam um grupo de pessoas com algum objeto pontiagudo ou laminado. Para alguns teóricos, a trinca de ouro do subgênero é composta por “O Massacre da Serra Elétrica” (1974) de Tobe Hooper, “Noite do Terror” (1974) de Bob Clark e “Halloween” (1978) de John Carpenter. A partir destes três filmes seguiram-se diversos outros que utilizavam da mesma “fórmula”, passando pelos anos 1980. Até que ela se desgastasse e começasse uma nova tendência do slasher metalinguístico, como “Pânico” (1996), de Wes Craven. No geral, o subgênero é marcado por esse teor conservador, de punição ao sexo e à juventude, o que reflete a era política que marcou os EUA a partir de 1981, o governo de Ronald Reagan.
Mas, dá para voltar mais de uma década para encontrar um dos pais dos slashers – para além dos gialli italianos e de “Psicose”. Em 1960, mesmo ano do clássico de Hitchcock, o diretor Michael Powell fez “A Tortura do Medo”, que não só traz vários dos elementos que formariam o subgênero anos depois, como ainda teoriza sobre os temas mais caros a ele. Enquanto “X – A Marca da Morte”, no fundo, tenta ser uma celebração da juventude, da liberdade sexual e do terror, “A Tortura do Medo” vê com maus olhos (para ficar num palavreado caro ao filme) as pulsões sexuais, de morte, e do próprio ato de filmar.
Mark Lewis, interpretado por Karlheinz Böhm, é um fotógrafo que trabalha num estúdio de cinema. Mas, ele também é um assassino. Que filma as reações de suas vítimas enquanto elas morrem. Assim como o primeiro plano de “X”, a sequência inicial de “A Tortura do Medo” exemplifica e expõe os procedimentos do próprio filme. A primeira coisa que vemos é o plano detalhe de um olho. Então, aparentemente vemos o contracampo do plano anterior, uma mulher parada em frente a uma vitrine, o que leva a crer que era isso que o olho estava observando. Até que um homem entra no enquadramento e o filme corta para um plano detalhe de uma câmera escondida no sobretudo dele. A partir daí, tudo o que vemos é do ponto de vista da câmera, como se olhássemos pelo visor. A mulher será assassinada e, depois, iremos rever a cena, agora projetada em uma tela de cinema enquanto o assassino assiste às imagens que ele mesmo tinha feito com a câmera.
Portanto, os olhares se confundem: o do protagonista/assassino, o da câmera, o do diretor Michael Powell e o nosso como espectadores. Todos esses olhares, incluindo o nosso, são o de um “Peeping Tom” – título original do filme que pode ser traduzido como “bisbilhoteiro” e “voyeur”. Não à toa, a reação de Mark ao assistir os próprios atos é um misto de gozo e decepção. Ele sente prazer ao olhar. Olhar um assassinato que ele mesmo cometeu, mas não ao cometê-lo, e sim ao assisti-lo. E está sempre em busca de um prazer maior, ou seja, de assistir a uma cena de assassinato (e ver o medo nos olhos da vítima) ainda “melhor”. Os planos das mulheres gritando, as “scream queens”, comum na maioria dos filmes de terror, aparecem aqui como um tropo do gênero e como uma imagem dupla, já que elas são filmadas para que o protagonista assista depois. O que Mark faz, em resumo, é dirigir seu filme de terror. Para seu próprio prazer e para o nosso.
Isso fica evidente não só nas cenas que mostram as sessões de cinema particulares de Mark, mas também nos próprios elementos formais de “A Tortura do Medo”. A fotografia com cores saturadas, comum nos filmes de Powell, junto com as luzes duras e muitas sombras, assumem o tempo todo o aspecto de “cinema”. Como se destacasse que o que estamos vendo é, de fato, um filme, dando ênfase na natureza falsa, de estúdio, dos cenários, por exemplo. Para cada assassinato, Mark pensa na iluminação correta para a cena que está dirigindo. Suas vítimas e suas modelos assumem as mesmas posições estáticas, posando para a câmera.
Um momento crucial para entender a encenação que Mark cria é o do assassinato da atriz interpretada por Moira Shearer, que foi protagonista de outro famoso filme de Powell, o musical “Os Sapatinhos Vermelhos”. Mark prepara as luzes, mede a distância para o foco da câmera, monta o cenário e dirige a atriz. Enquanto isso, ela parece estar ensaiando para um musical. O crítico Adrian Martin, inclusive, defende que o musical é o gênero em que o cinema chega mais próximo da pura “mise-en-scene”, da pura encenação, combinando todos os elementos do filme – incluindo aí a música e as movimentações dos atores – de forma exemplar. Partindo dessa ideia, Mark está também, a partir da morte e, portanto, do terror, atingindo a encenação máxima. Ao mesmo tempo real e encenada.
Em última análise, Mark é o diretor e o público de seu próprio filme. Ele busca o que todo espectador do terror também busca: sentir prazer ao assistir ao medo, ao sofrimento e à morte de pessoas na tela. Todo mundo ao assistir a um filme se torna, então, um voyeur. O termo freudiano, citado no filme, é o de escopofilia. Que significa a perversão de sentir prazer ao observar um ato sexual. Mark, um escopofílico desde criança, juntou o prazer de olhar com o medo que sentia ao ser filmado pelo pai, projetando ambos na tela de cinema, assim como o público. A câmera se torna o instrumento dos assassinatos, de captura do medo real e gerador de prazer. Cinema, morte e sexo misturados em uma coisa só. O que não deixa de ser a síntese do slasher.
Assim como “X – A Marca da Morte”, “A Tortura do Medo” equivale sexo e morte. Mas, Michael Powell criou um belo exemplar do cinema que, além da perfeição narrativa e do uso de cada elemento formal, ainda coloca em imagens toda uma teorização sobre a arte, sobre o terror, sobre o fazer fílmico e sobre o espectador. Nas décadas seguintes, as teorias semióticas incluiriam ainda mais a psicanálise no debate sobre o cinema. Em 1960, Powell e seu filme já colocavam na tela o jogo de projeções, do artista e do público, que envolve essa arte. E já entendiam que nada é mais assustador e prazeroso que sua própria expressão aterrorizada refletida de volta pra você em uma sala escura.
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