Sessão Dupla | Batman, Janela Indiscreta e a questão do olhar

O Sessão Dupla de hoje discutimos como dois filmes distintos trabalham a questão do olhar no cinema: The Batman e Janela Indiscreta. Entenda!

O olhar em “The Batman”

Uma câmera subjetiva nos mostra um olhar mediado por um instrumento que parece ser um binóculo. Esse olhar esquadrinha o lado oposto da rua onde se encontra, observa a entrada de uma mansão, sobe até uma das janelas onde uma pessoa com uma roupa de camuflagem e uma espada ataca um homem de terno. O que, à primeira vista, sugeria um assassinato, revela-se uma brincadeira entre pai e filho, que veste uma fantasia de Halloween. Este é o primeiro plano do “The Batman” (2022), de Matt Reeves. Filme que pode ser encarado a partir de uma tradição do cinema que investiga o olhar, seja dos personagens ou do público.

De quem é a visão que acompanhamos na primeira cena? Do Batman? De algum vilão? A resposta só fica clara mais para frente, quando passamos a associar a música “Ave Maria”, de Schubert, com o Charada, interpretado por Paul Dano. De qualquer forma, essa dúvida é proposital, já que o herói e o vilão se confundem no percurso do filme. O próprio Charada se enxerga como um aliado do Batman. Ambos compartilham uma visão distorcida do combate ao crime. O Charada nada mais é do que uma versão radicalizada do reacionarismo de Bruce Wayne quando veste a capa de super-herói.

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Em diversas cenas, o diretor usa de planos com pouca profundidade de campo, ou seja, em que apenas uma pequena parte da imagem aparece em foco, com o resto desfocado. Como se tentasse exprimir aí uma incapacidade do Homem Morcego de enxergar para além de suas preconcepções. Uma visão limitada, portanto. Essa escolha de fotografia também sugere que a própria Gotham é um cenário com significados estabelecidos. Fechada, tanto no sentido de ser claustrofóbica, suja, inescapável, quanto de impor um olhar sempre pessimista sobre ela mesma. E de construir uma narrativa específica sobre si própria, taxando como vilões os pequenos criminosos de sempre, enquanto os verdadeiros malfeitores se escondem nas sombras e dominam a cidade.

O Batman é, acima de tudo, um detetive, que precisa ver o conjunto da realidade para chegar em respostas para a investigação. E a narrativa do filme faz esse caminho, de confrontar seu olhar com o do vilão, de um lado do espectro, e da Mulher Gato, de outro. Não à toa, o herói só começa a entender seu lugar, como parte da elite (sendo ele um Wayne), na corrupção de Gotham quando assume a visão de Selina Kyle. A cena é emblemática porque materializa esse jogo de empatia, de fazer do olhar de outro o seu: com uma lente de contato que também é uma câmera, Selina se infiltra no bar escondido do Pinguim e Batman assiste a tudo de seu computador.

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“Janela Indiscreta” e o ponto de vista limitado

A investigação do olhar que “The Batman” propõe é o de entender os limites da significação que a visão de alguém pode tirar de um mundo que é impossível de conhecer por inteiro. Sobre como se cria narrativas enganosas a partir do que se vê, ou do que acha que se viu, como o plano inicial discursa muito bem. Num primeiro momento achamos que se trata de um cidadão ilustre sendo atacado por um criminoso, quando, na verdade, é uma brincadeira de pai e filho e o verdadeiro criminoso é o homem de terno. São questões que estão longe de serem novas, que discutem o quanto uma imagem tem de mentira ou verdade. E que animaram a obra de cineastas diversos, sendo Alfred Hitchcock o maior entre os formadores de um pensamento cinematográfico a respeito disso. E “Janela Indiscreta” (1954) se coloca como um dos grandes filmes, do diretor e no geral, a tratar desses assuntos.

Jeff, interpretado por James Stewart, é um fotógrafo de situações de risco que se envolve em um acidente e fica com a perna imobilizada. No tédio de não poder sair de casa, passa o dia na janela espionando os vizinhos dos prédios em volta. Na maior parte do filme, passamos com Jeff presos no apartamento. A visão que temos de cada janela dos outros prédios, as opiniões sobre os moradores e as narrativas que se formam a partir das imagens que vemos, surgem com a mediação de Jeff, que não por acaso usa das lentes de sua câmera para exercer a atividade voyeur. Um dos vizinhos parece agir de forma estranha e o fotógrafo começa a imaginar que o homem matou a esposa. A vizinha bonita, sempre solitária, seria uma solteirona? Hitchcock usa da disposição do cenário, um quarteirão inteiro construído do zero, com as janelas viradas para o apartamento de Jeff, para montar uma espécie de rede de televisões, onde a vida de cada vizinho parece um filme ou uma série que o protagonista assiste.

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A questão do limite do olhar se coloca desde onde Hitchcock escolhe encenar todo o filme, com os planos subjetivos que nos mostram o que o protagonista vê. E, mesmo quando temos um olhar objetivo das cenas, estamos ancorados no apartamento de Jeff, sem conhecer nada dos vizinhos além das imagens e sons que escapam por suas janelas. Além de tudo, esse é o desafio que o cineasta impõe a ele mesmo: o de como encenar diversas tramas e subtramas que se desenrolam em vários cenários ao mesmo tempo a partir de um ponto de vista único. O resultado circunda a ideia da impossibilidade de se enxergar o todo.

O perigo do voyeurismo (e da cinefilia)

O diretor vai responder se os achismos do fotógrafo se concretizam ou não, sempre colocando em xeque a visão e, por consequência, o próprio cinema. Jeff pode ser considerado um pervertido, enxerido, que vive da vida alheia, assim como o público do cinema e da TV. É uma visão (sempre ela) irônica e moralista, como não poderia deixar de ser em Hitchcock. A câmera e, portanto, o olhar, são limitados, e reproduzem, para quem vê, uma narrativa incompleta. É como se o diretor deixasse um aviso: “não acredite em tudo o que se vê”, e o caminhar do filme também argumenta que essa obsessão pode ser perigosa. O protagonista se sente confortável bisbilhotando os outros, mas em determinado momento ele é quem é visto. A violência do lado de fora da casa (ou de dentro da tela) chega até o observador.

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Se, em “The Batman”, é o olhar da Mulher Gato quem ajusta e informa a visão renovada do herói, em “Janela Indiscreta” é Jeff quem irá corromper o olhar de sua namorada, interpretada por Grace Kelly. Lisa é uma socialite que luta para ter a atenção do protagonista, que está mais preocupado em olhar pela janela. Jeff a vê como mimada, despreparada para o mundo de aventuras em que vive. Progressivamente, Lisa vai se interessando também pelo possível caso de assassinato, até que ela decide investigar o apartamento do suspeito. Ela entra na narrativa que interessa a Jeff, portanto. Corre perigo, e só assim torna-se um par ideal na visão do fotógrafo. O voyeurismo, e a cinefilia, tomam um sentido de doença contagiosa e perigosa.

Tanto “The Batman” quanto “Janela Indiscreta” podem ser lidos na chave de investigação sobre o olhar, que pode ser enganador e perigoso. Um outro cineasta que também faz isso muito bem, e tem uma certa obsessão com o tema, é Brian de Palma, talvez um dos melhores diretores a investigar as mentiras da imagem cinematográfica. Em todo o caso, trazendo essas ideias para fora do cinema, são filmes que demonstram que a imagem, seja ela numa tela, num celular, numa campanha publicitária, nunca é totalmente real. Mesmo um documentário possui um olhar específico sobre o tema que aborda. A realidade de toda imagem é sempre discutível e não há imparcialidade nas narrativas que construímos e que consumimos. Como espectadores, resta continuarmos investigando todos os olhares.

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