Não! Não olhe! | Confira nossa crítica

Jordan Peele é muito consciente das referências que tem e se utiliza delas para inverter a visão predominante dos gêneros, para colocar em foco um olhar negro dentro da indústria.
Ficha Técnica
Título: Não! Não Olhe! (Nope)
Ano de Produção: 2022
Dirigido Por: Jordan Peele
Estreia: 25 de agosto de 2022 (Brasil)
Duração: 2h15min
Classificação: 14 anos
Gênero: Terror/Ficção Científica
País de Origem: Estados Unidos
Sinopse: “O que é um mau milagre?” O vencedor de um Oscar, Jordan Peele causou disrupção e redefiniu o género do terror moderno com “Corra” e “Nós”. Agora, Peele reimagina o filme de verão com um novo pesadelo pop: o épico expansivo de terror “Não! Não Olhe!”. O filme volta a reunir Peele e o vencedor do Oscar Daniel Kaluuya (“Corra”, “Judas e o Messias Negro”), juntando Keke Palmer (“As Golpistas”) e Steven Yeun (“Minari”, “Okja”), ator já nomeado para o Oscar , no papel de residentes de uma localidade solitária no interior da Califórnia, que testemunham uma espantosa e arrepiante descoberta.

 

Em uma perspectiva histórica, o cinema ainda é uma arte muito jovem. As experiências com imagens em movimento datam da segunda metade do séc. XIX e, a partir daí, vão se estabelecendo como linguagem e como indústria. O que significa dizer que, quando um filme como “O Grande Roubo do Trem”, de 1903, dirigido por Edwin S. Porter – um faroeste sobre caubóis criminosos assaltando um trem – foi feito, o que ele mostrava tinha quase um aspecto de documentário. O consenso é de que o período conhecido como Velho Oeste teria terminado em 1890, mas a expansão territorial norte americana continuava. E filmes como esse retratavam seu próprio tempo ou tempos ainda muito frescos e recentes. O cinema, portanto, foi essencial para consolidar a própria história dos Estados Unidos, seus mitos, seus pais fundadores, sua cultura.

Nessa relação dialética entre arte e realidade, com a história provendo acontecimentos então narrados e transformados em ideais e mitologias pelas artes – que por sua vez também influenciavam na própria concepção de nação norte-americana e seus percursos históricos –  percebe-se a construção de uma visão de mundo específica que, claro, privilegia o olhar e os interesses de quem contava essas histórias. O homem branco, conquistador do oeste selvagem, que se contrapunha aos indígenas incivilizados e violentos; os heróis da Ku Klux Klan contra os negros bestiais: são figuras que partem desse imaginário e de uma visão de sociedade. Imaginário complexo, é verdade, como demonstra o fato de que muitos destes filmes partiam do ponto de vista de trabalhadores rurais oprimidos, por exemplo, como “As Vinhas da Ira”, adaptado às telas pelo conservador John Ford. E que, por isso, o próprio cinema tratou de revisar e criticar. É nessa posição crítica e revisionista, da história, dos gêneros e da arte, que está “Não! Não Olhe!”, de Jordan Peele.

Não! Não Olhe!

Um dos primeiros filmes da história, relembra Emerald (interpretada por Keke Palmer), é uma sucessão de fotos de um caubói negro galopando em seu cavalo. Os 24 fotogramas, que eram exibidos em alta velocidade por um Zoopraxiscópio, foi criado por Eadweard Muybridge, um fotógrafo inglês, em 1878. Gilbert Domm, o jóquei negro, seria então o primeiro astro da história do cinema. Mas, quase 150 anos depois, ele ainda é um desconhecido e a maior parte dos grandes astros do cinema ainda é branca. Em “Não! Não Olhe!”, as pessoas negras são trabalhadores invisíveis nos bastidores da indústria, treinadores de cavalos para produções hollywoodianas. Quando O.J. Haywood, interpretado por Daniel Kaluuya, presencia eventos misteriosos no céu de seu rancho, a saída dos protagonistas é tornar visível o que ninguém vê. Colocar a ameaça, e os heróis negros, em filme (na película, já que as câmeras digitais param de funcionar com as aberrações meteorológicas causadas pela criatura).

Como um cineasta da contemporaneidade, Jordan Peele é muito consciente das referências que tem e se utiliza delas para inverter a visão predominante dos gêneros, para colocar em foco um olhar negro dentro da indústria. Ou seja, retoma a imagem de Domm nos fotogramas de Muybridge para reivindicar um outro caminho da história do cinema, partindo de suas origens e convenções. Quando o diretor faz um plano de uma mulher negra dirigindo uma moto no terreno arenoso do deserto californiano, esta imagem vem repleta de subtextos políticos e significados intelectualizados. Mas, Peele nem sempre consegue acomodar seu talento para imagens individuais impactantes e seus textos políticos e alegóricos numa narrativa que exista como tal, como uma confecção coesa para além de suas teses e manifestos.

Não! Não Olhe!

Em “Não! Não Olhe!”, é muito perceptível a influência do Spielberg de “Tubarão” e “Contatos Imediatos do Terceiro Grau”. Daí as comparações com “Sinais”, de M. Night Shyamalan, outro grande fabulador do cinema atual, das relações familiares desconjuntadas atravessadas pelo suspense, terror e ficção científica em um imaginário norte-americano. Mesmo que Peele encontre momentos visualmente inventivos – do design da criatura à tempestade no rancho – a narrativa em si e a criação de uma atmosfera misteriosa e de suspense parecem deslocados das reais intenções do cineasta. Como se, em um polo, estivesse o conteúdo político e as metáforas e, no outro, as tentativas formais de um cinema de gênero. Sem que ambos se encontrem e, na verdade, com o primeiro sufocando o segundo.

Diz muito sobre como o filme trabalha essas influências o fato de que a melhor cena com elementos de suspense seja a piada no celeiro. Em um filme com muito texto metalinguístico, soa até como uma autoparódia por parte de Peele, com o movimento das criaturinhas remetendo à corporalidade da família dupla de “Nós”, filme anterior do diretor. Mesmo a estrutura episódica, separada em capítulos e com pulos no tempo, freia o crescendo de tensão sem permitir que ele se concretize, parecendo um amontoado de vinhetas frouxamente organizadas que nunca chegam num ápice dramático ou de suspense.

Não! Não Olhe!

“Não! Não Olhe!” é muito mais pensado a partir da vontade de inserir seus personagens em um mundo de imagens contemporâneas que remetam ao espetáculo do faroeste, na grandiosidade do deserto estadunidense. De, justamente, reviver essas imagens através do olhar de um cineasta negro sobre as etnias historicamente invisibilizadas por esse cinema. É importante para a imagética do faroeste os grandes planos dos ambientes inóspitos, os pequenos humanos e seus cavalos na imensidão do deserto. Essa captura em imagens revisionistas feita pela fotografia de Hoyte van Hoytema, auxiliada pelas câmeras e a proporção de tela mais alta do IMAX, a noite estrelada refletida nas peles de Daniel Kaluuya e Keke Palmer, o sem-fim de bonecos de posto espalhados por uma planície, o capacete espelhado de um repórter enxerido, ainda que como imagens individualizadas e deslocadas pela confusão narrativa e profusão de ideias, são o que o filme tem de melhor.

O cinema existe a partir da relação entre forma e conteúdo, ainda que essa relação não precise ser necessariamente equilibrada, podendo pender para um dos lados. Por mais importantes e bem-intencionadas que sejam as discussões políticas, filosóficas e as temáticas presentes em uma obra, elas por si só não fazem um filme. “Não! Não Olhe!” é inundado por grandes ideias, metáforas, revisões, metalinguagem e crítica, que não consegue usar de seus elementos formais para manter uma narrativa coesa. Aqui, Peele se sai melhor como um criador de novas imagens individuais cheias de significados a partir do faroeste do que como narrador de ficção científica e suspense. Mas, tem um olhar inventivo o suficiente para fazer ser visto seu manifesto cinéfilo pelos seres invisibilizados.

Para mais críticas, clique aqui!


Conheça nosso canal no Youtube!