As adaptações de Resident Evil
O percurso das adaptações para as telas da franquia de games “Resident Evil” sempre foi turbulento. No começo dos anos 2000, Paul W.S. Anderson assumiu a tarefa de começar a saga nos cinemas, que durou até 2016, dirigindo quatro dos seis filmes. Apesar de bons números na bilheteria, a recepção crítica e, principalmente, dos fãs dos jogos foi, no geral, bastante negativa. Em 2021, o bom reboot “Resident Evil: Bem-Vindo a Raccoon City” passou praticamente despercebido ao grande público. Agora, a Netflix estreia “Resident Evil: A Série” e, embora seja cedo para confirmar a recepção negativa, as primeiras impressões não são muito animadoras (confira nossa crítica aqui).
A questão principal que rondou a franquia original (nos cinemas) foi a eterna discussão sobre a adaptação. Anderson, que escreveu todos os seis filmes, concebeu uma nova história a partir dos jogos, colocando como protagonista uma nova personagem, Alice, interpretada por Milla Jovovich. Os acontecimentos dos games sendo basicamente ignorados pelo cineasta. O “problema”, então, teria sido resolvido pelo filme de 2021, mesmo assim não sendo suficiente para reviver o entusiasmo com a produção. Já a série da Netflix parece ficar no meio do caminho, respeitando os games, mas tentando conceber algo novo, com uma narrativa dividida entre o antes e o depois do apocalipse zumbi. Como já adianta alguns memes que circulam na internet, parece que o movimento que começou ainda na década passada para parte dos cinéfilos finalmente atinge o grande público: o de revisar os filmes de Paul W.S. Anderson dando a eles os créditos que merecem.
O cinema revisto
Essa tendência da reavaliação de obras de arte não é nova, inclusive no cinema. Basta lembrar que a sétima arte era considerada um entretenimento popular, de menos prestígio do que o teatro, a literatura e a pintura, por exemplo. Parte do esforço crítico e teórico até os anos 40/50 foi de justamente encontrar as especificidades do cinema e reivindicar seu lugar de prestígio. Com a adoção e agitação feita pelos críticos franceses da revista Cahiers du Cinema da Política dos Autores, cineastas populares como Alfred Hitchcock, John Ford e Howard Hawks, antes vistos como “menores”, passaram a ser considerados grandes artistas que dominavam completamente seus dons. Parafraseando Alexandre Astruc, crítico e diretor de cinema, os cineastas se tornaram o equivalente autoral do que o escritor é para a literatura.
Para a atual geração, a internet foi palco para novos questionamentos, de onde surgiu a ideia do Autorismo Vulgar, que se propunha a reavaliar e afirmar como autores os diretores de gêneros populares da indústria, como Michael Bay, M. Night Shyamalan e Paul W.S. Anderson. Sem entrar nos méritos e contradições que essa ideia carrega, é inegável que existe no cinema um padrão de qualidade completamente questionável. Pensando no Oscar e nos Festivais, por exemplo, que incensam tipos muito específicos de filmes, considerados “respeitáveis”, e que ignoram na mesma medida qualquer coisa que se afaste disso. Chegando ao cúmulo de inventar, no Oscar, uma categoria de “Filme Popular”, como se o melhor filme não pudesse ser popular e vice-e-versa. Ao mesmo tempo em que a grande indústria se restringe a outro modelo igualmente inerte, dos blockbusters que se repetem e se citam eternamente, sem a possibilidade de escaparem um centímetro de uma fórmula comercial testada e aprovada para todos os gostos.
Quanto a Paul W.S. Anderson, e a seus filmes na franquia Resident Evil, basta dizer que ele é sim um cineasta com um estilo próprio e que se distancia da incapacidade cinematográfica da grande máquina hollywoodiana. Como exemplar essencial para a revisão proposta neste Sessão Dupla, o escolhido é “Resident Evil 5: Retribuição” (2012).
Resident Evil e as imagens falsas
Se a principal crítica feita pelos fãs à franquia original do cinema é a de falta de fidelidade em relação aos jogos, talvez seja possível defender que, para além da trama, Anderson se mostra muito mais preocupado com a adaptação de uma lógica “gameficada” do que da história em si. Chegando ao ápice de seu estilo, e dessa lógica, no quinto filme. Depois de uma aparente morte, Alice ressurge das águas numa sequência de ação de trás para frente, um rewind que acaba com a personagem acordando, com um corte de cabelo diferente, numa casa de subúrbio onde encontra um marido e uma filha. Fica claro, logo depois, que tudo o que veremos a partir daí é uma simulação. O diretor se desprende de qualquer necessidade narrativa e dramática para focar no puro deslocamento dos personagens, que a cada cenário enfrentam ameaças diferentes e precisam descobrir como chegar no próximo ponto da jornada a partir de cada situação. Como se pulassem de fase em fase.
Esse desprendimento, além de colocar em segundo plano um ponto fraco do diretor, os diálogos e uma certa noção de desenvolvimento dramático, permite impor como finalidade o grande interesse de Anderson: as diferentes abordagens práticas de cada espaço que aparece na tela. As infinitas sequências de ação do filme são enquadradas e montadas com precisão (por mais que esse formalismo “limpo” fosse dar lugar a uma outra lógica, a da brutalidade e rapidez do corte, nos filmes seguintes do diretor). E, sendo uma adaptação de videogame, os planos se baseiam numa iconografia da ação, como se cada frame fosse uma action figure de um momento icônico de um jogo.
Cada novo cenário é uma simulação – o subúrbio, Tóquio, Moscou, Nova Iorque. A menina que pensa ser filha de Alice é um clone com memórias implantadas. Mesmo a personagem de Milla Jovovich é uma pessoa sem passado, perdida em um mundo falso. Todas as imagens do filme são falsas, como também o é o CGI, os efeitos visuais, o tratamento digital da imagem que faz com que os atores pareçam modelos 3D de computador. Anderson busca essa falsa limpidez, essas imagens tecnológicas.
No fundo, os filmes de Resident Evil são sobre uma corporação que desumaniza as pessoas, cria zumbis ou clones, simulacros do real. O grande arco de Alice na franquia é um mergulho gradual na irrealidade, culminando neste quinto exemplar, e uma busca pela nova realidade, já que o sexto longa retoma cenários e sequências dos três primeiros filmes e termina com uma ressureição metafórica e humanizada da personagem.
Não por acaso, as situações se repetem entre os filmes. Os corredores brancos, os clones, a Tóquio chuvosa, os closes no olho da atriz… Claro que, sendo um cineasta com um interesse pelo o que o gênero pode propor, cada repetição é pensada de novas maneiras visualmente criativas e que tragam novas possibilidades de perigo e de ação. Mas, em todo o caso, a desumanização causada pela Umbrella é a desumanização da contemporaneidade, que transforma os seres em máquinas ou monstros. Em eternas repetições falsas de si mesmo. Enquanto o importante para Alice, neste filme, é preservar o que há de real, o sentimento (implantado, mas não menos verdadeiro) da menina que pensa que é sua filha.
Enquanto a contemporaneidade é uma máquina de moer gente, como os momentos de terror da franquia demonstram bem, e um apagamento eterno do humano num mundo falso, existe sempre, nos filmes de Anderson, uma esperança redentora, uma resistência contra a máquina. O que há de humano luta para sobreviver. Já que o assunto aqui é o de doenças desumanizadoras, de eternas repetições, de grandes corporações, é possível entrar numa última alegoria. Num momento em que a indústria cinematográfica – como provavelmente sempre o foi – é o de modelos comerciais ou artísticos repetidos constantemente, sem espaço para novas propostas ou com cânones arbitrários que se negam a mudar, o cinema de ação de Paul W.S. Anderson pode ser revisto como um bom antídoto.
“Resident Evil: A Série” está disponível na Netflix. “Resident Evil: Retribuição” está disponível na HBO Max.
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