“STRANGER THINGS” E A PÓS-MODERNIDADE
Na semana passada, o escritor Stephen King e os roteiristas de “Stranger Things” trocaram leves alfinetadas em relação à nova temporada. King elogiou a série, comentou de uma referência à “Carrie, a Estranha” nos novos episódios e criticou a divisão do ano em duas partes. Os roteiristas, então, responderam: “Desculpe, tio Stevie, [os episódios] 8 e 9 ainda não terminamos, mas estamos trabalhando o mais rápido que podemos! Que bom que você está gostando e que pegou nosso riff super sutil de Carrie”.
Começo o Sessão Dupla de hoje citando o ocorrido para poder focar na resposta dos roteiristas, que consideram as referências à Carrie “super sutis”. Não é surpresa para ninguém que “Stranger Things” sempre teve como princípio ser um amontoado, divertido mas nada original, de tendências do cinema de horror dos anos 70 e 80. Sendo o próprio King uma fonte inesgotável de inspiração. Por isso, soa no mínimo estranho o adjetivo “sutil” para caracterizar qualquer referência feita na série, que sempre assumiu suas fontes e sua intenção de ser um revival dessas mesmas tendências de décadas passadas. A série, inclusive, foi responsável por uma gigantesca onda de produtos que partiam dessa mesma base nostálgica, como a trilogia “Fear Street”, que a Netflix lançou ano passado.
Mas, essa afirmação dos roteiristas revela todo um modo de produção e consumo que pode ser traçado pelo menos desde os anos 70. Uma espécie de “nova” era social que muitos teóricos chamam de pós-modernidade. Simplificando, e considerando uma História linear em que um período histórico sucede o outro, essa era viria depois do período moderno, em que a sociedade como um todo perde seus referenciais e sua “memória histórica”. Para o cinema, por exemplo, após os cineastas modernos tentarem se distanciar dos ideais do cinema clássico a partir da criação de novas formas e novos jeitos de usar a linguagem cinematográfica, mas ainda assim inspirados pelos diretores clássicos (como Alfred Hitchcock, John Ford, Howard Hawks), a próxima geração de realizadores teria perdido uma “devoção” por esses mestres do passado. Como se, para as novas gerações, toda a história do cinema fosse um balcão de self-service, de onde se pode tirar, quase aleatoriamente, as referências que se quer sem precisar de um motivo ou uma vontade de reavaliar essas referências a partir de um olhar contemporâneo.
Simplificando mais ainda: quando “Stranger Things” refaz a cena de “Carrie, a Estranha”, de Brian de Palma, onde a protagonista é banhada por sangue num baile da escola, não é por qualquer pretensão maior do que um simples aceno. Faz porque é legal, talvez. E mais: como a resposta a Stephen King parece deixar claro, eles sabem que pouca gente vai reconhecer o aceno, que seria, então, “super sutil”.
VECNA X FREDDY KRUEGER
Tem uma outra referência, mais clara, que envolve toda a trama do novo ano. Um serial killer sobrenatural começa a matar jovens de uma cidadezinha do subúrbio americano, colocando suas vítimas num estado de sonho. O modo de matar envolve as vítimas flutuando, fora da realidade, sem que ninguém por perto consiga acordá-las. Seria o assassino Vecna ou Freddy Krueger, da franquia “A Hora do Pesadelo” (1984)? Para completar as ligações, Robert Englund, o intérprete de Freddy, aparece em um dos episódios, dando vida a Victor Creel, um paciente de uma instituição psiquiátrica que pode ter a ver com o surgimento do monstro.
O mais interessante disso tudo é que “Stranger Things” não deve a Wes Craven, criador e diretor do primeiro “A Hora do Pesadelo”, apenas seu vilão. Craven foi, também, um lançador ou consolidador de tendências. O horror bruto, realista de “A Última Casa” (1972) veio dois anos antes do também bruto e realista “O Massacre da Serra Elétrica” (1974), de Tobe Hooper. “A Hora do Pesadelo” renovou os filmes slashers, sendo “Halloween – A Noite do Terror” (1978), de John Carpenter, um dos exemplares mais reconhecidos. E com o cansaço dos slashers, “inaugurou” um exemplar da pós-modernidade, e de crítica a ela, nos filmes de horror com “Pânico” (1996), que brincava, assumia e subvertia as regras desse tipo de filme. A autoconsciência com que “Stranger Things” trata os princípios do gênero ao mesmo tempo que usa desses mesmos princípios para construir sua narrativa pode ser vista como uma extensão de toda a onda que “Pânico” lançou, dos filmes conscientes de suas engrenagens e que as assumem abertamente. Ainda que não exista mais a parte crítica, sintoma de uma reprodução comercial eterna de uma fórmula que perde seus aspectos mais importantes.
Mas, dentro da obra do Craven, não foi Ghostface quem iniciou a fase autorreflexiva do terror. Foi, justamente, Freddy Krueger, que “retorna” virtualmente em “Stranger Things”. Depois de cinco continuações do filme original sem o comando do diretor, Wes Craven volta ao roteiro e direção em “O Novo Pesadelo – O Retorno de Freddy Krueger” (1994). Filme em que os atores do primeiro também voltam, mas agora interpretando eles mesmos. Em que Freddie Krueger é uma entidade que sai dos filmes de “A Hora do Pesadelo” para perseguir e matar os atores que fizeram esses filmes.
OS NOVOS PESADELOS
“O Novo Pesadelo” é, portanto, sobre uma instância mitológica se apossando da realidade, o que até lembra em algum sentido a série da Netflix. Mas, Craven parte de uma estética mais realista, de algum uso de câmera na mão por exemplo, para tratar a “vida real” de seus atores. É Freddy o disruptor dessa realidade. Em algum sentido, é até uma extrapolação do primeiro filme da franquia. Naquele, por um padrão bem hollywoodiano inclusive, havia uma clara distinção entre os sonhos e o real. Diferente do surrealismo, portanto, que lidava com essa lógica onírica, mas que construía uma realidade em que era essa lógica que prevalecia, com filmes muitas vezes feitos a partir da “escrita automática”, ou seja, através de um fluxo inconsciente, quase alucinatório, da produção. Neste, a instância mitológica também vai acabar tomando conta da realidade.
Num primeiro momento, o terror surge de ligações telefônicas, terremotos, possíveis distúrbios mentais dos personagens e alucinações com o vilão de “A Hora do Pesadelo”. São momentos muito tensos porque afundam o subúrbio de Los Angeles em um incômodo constante. De uma força maléfica que vai aos poucos distorcendo uma realidade muito próxima do espectador. Uma cena marcante que exemplifica bem isso é quando Heather Langenkamp, atriz que interpretou Nancy no primeiro longa da franquia, é entrevistada num talk show. Robert Englund, intérprete de Freddy, aparece de surpresa caracterizado. Craven nos mostra uma visão subjetiva de Heather, em câmera lenta, do “vilão” em contraluz, enquanto o contracampo vê a atriz com as sombras das garras de Freddy sobrepondo seu rosto.
Quanto mais o vilão toma conta da realidade, mais transforma essa mesma realidade. E, com isso, faz da realidade um filme. Uma sutil mudança na iluminação já deixa isso claro. Saímos do realismo de luzes que se pretendem naturais para um visual estilizado, de um aspecto azulado e cheio de sombras. Então, Freddy pode atingir todo o seu potencial de ser mitológico, cartunesco, o que faz com que seja ainda mais assustador. Assume-se os signos psicanalíticos, já que o cinema de Craven também passa por uma leitura freudiana, ou jungiana, dos contos de fadas.
Ex-professor de literatura que era, Wes Craven tem fé nos mitos, e em todos os aspectos morais, políticos e inconscientes que isso implica. Se “João e Maria” ensina as crianças do perigo que é aceitar doces de estranhos e o Lobo Mau da “Chapeuzinho Vermelho” tem todo um subtexto de predador sexual, os contos de fadas de horror do diretor também carregam consigo essa face de conto moral. O primeiro “A Hora do Pesadelo”, por exemplo, lidava com uma ferida aberta no inconsciente coletivo de uma sociedade burguesa, que esconde seus maus por baixo de uma fantasia de cidadãos de bem. “O Novo Pesadelo” coloca em xeque a indústria e o próprio fazer dos filmes de terror e seus efeitos no espectador. Um pouco o que a franquia “Pânico” também faria mais tarde. Craven, afinal, aparece no filme como o roteirista que continua a escrever mesmo com seus personagens ameaçados pelo vilão que ele criou.
O cinema do diretor é um cinema de uma crença suprema na força dos mitos que cria, ao mesmo tempo em que olha os efeitos dessa força, dessa perda de inocência do conto de fadas, de maneira crítica. Pensando que a grande tendência atual do terror é o tal do pós-horror, de filmes como “Hereditário” e “A Bruxa”, que parecem não confiar em nada no que o terror como gênero tem a oferecer, precisando sempre tratá-lo como “cinema elevado”, filme de festival, dramático e intelectualizado, “Stranger Things” pode ser um ponto fora da curva. Se perde totalmente a parte reflexiva crítica de Wes Craven, já que há uma eterna reciclagem do passado que os espectadores podem nem reconhecer mais, pelo menos ainda parece manter uma fé no terror e nas suas imagens. Uma nostalgia de um tempo em que o cinema de horror podia ser só sobre ser cinema de horror.
“O Novo Pesadelo – O Retorno de Freddy Krueger” está disponível na HBO Max.
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