O Homem do Norte | Confira nossa crítica

O Homem do Norte, novo filme do diretor de A Bruxa e o Farol, é um épico Viking que se perde na escala e na concepção de um filme "adulto".
O Homem do Norte
Ficha Técnica
Título: O Homem do Norte (The Northman)
Ano de Produção: 2022
Dirigido Por: Robert Eggers
Estreia: 12/05/2022
Duração: 2h e 17m
Classificação: 18 anos
Gênero: Ação/Aventura
País de Origem: Estados Unidos
Sinopse: O Príncipe Amleth está prestes a se tornar um homem quando seu tio assassina seu pai e sequestra sua mãe. Duas décadas depois, o jovem é agora um viking com a missão de salvar a mãe, matar o tio e vingar seu pai.

 

Aos dez minutos de O Homem do Norte, há uma sequência lisérgica em que o Rei Aurvandil (Ethan Hawke) e seu filho Amleth (neste momento, de juventude, interpretado por Oscar Novak) fazem uma espécie de ritual de amadurecimento, de “hombridade”, ao lado do bobo da corte de Willem Dafoe. Pai e filho entram na caverna, onde acontece o ritual, de quatro. Bebem algo de duas vasilhas no chão, como lobos. Os dois homens repassam incessantemente, em closes individuais, os ensinamentos que um garoto precisa saber para se tornar um adulto. Um macho crescido. E acaba, depois de alguns planos que rodopiam verticalmente, numa visão simbólica da árvore genealógica dos reis da família.

É um momento significativo porque, primeiro, tematiza a visão do filme de uma ancestralidade nórdica, animalizada e corporalizada, do homem como um cão de caça obstinado a cumprir o dever destinado pelos laços de sangue. Segundo, porque é uma sequência com uma lógica própria dentro do filme como um todo, pensada a partir do corte, da montagem, que intensifica o tempo e contrapõe os planos dos closes num ritmo hipnotizante. Ela se destaca também no sentido de estar à parte, diferente da construção do resto do percurso.

A ESCALA ÉPICA

Pensado a partir de uma lenda escandinava, que por sua vez serviu de inspiração para o Hamlet shakespeariano, O Homem do Norte ultrapassa, em termos de proporção narrativa e espacial, os filmes anteriores do diretor Robert Eggers. A Bruxa e O Farol se mantinham restritos a poucos cenários e espaços reduzidos, sendo mérito de ambos, em diferentes níveis, o deixar surgir desse confinamento uma atmosfera opressiva e uma tensão que brotava dos embates entre os personagens e suas visões de mundo. Daí, já aparece um problema: como lidar com essa escala épica. Problema esse que se encontra refletido desde a opção por uma proporção de tela de 2.00 : 1, mais alta do que o costumeiro para os grandes blockbusters e mais larga do que os anteriores de Eggers. Como se a solução fosse imprimir essa escala na grandeza dos planos; que neles tudo precisa conter.

Depois da sequência destacada, no geral, o filme se torna uma repetição infinita de uma mesma decupagem: travellings e mais travellings laterais em planos longuíssimos. Liberto dos códigos do cinema de terror (e, aqui, essa libertação não carrega um bom sentido), que tem no fora de campo e no plano e contraplano parte importante dos seus efeitos, o diretor assume uma verdadeira recusa ao corte, uma necessidade de mostrar, de expandir o espaço ao máximo. É de um movimento contínuo e incessante, que poderia refletir o caminhar neurótico do protagonista, mas que acaba sendo não mais que um tique virtuoso e um sintoma da falta de controle de sua encenação.

Ainda se apresenta, no cinema do diretor, uma tentativa de equilibrar uma estilização dos signos do fantástico com um naturalismo das locações e das condições materiais de suas tramas – aqui, as filmagens em vales, montanhas, florestas e a sujeira e a lama das vilas e casas. Quando O Homem do Norte lida diretamente com o lado da fantasia, aparece a força do cinema de Eggers, de um certo rigor nos enquadramentos e de uma relação mais franca e expressiva entre os personagens. Mas que, neste filme, acontece em momentos muito pontuais, como o do ritual lisérgico, perdidos em meio ao colosso épico, ainda que Eggers reconheça a própria limitação e confine boa parte da narrativa na ilha do tio traidor do protagonista.

Contraintuitivamente, não há espaço para os atores, para o embate entre Alexander Skarsgård e Nicole Kidman, por exemplo, como havia para o overacting de Robert Pattinson e Dafoe em O Farol. Portanto, claramente é um curto-circuito em um filme que parte do princípio de uma corporificação animalesca, de uma brutalidade física. Enquanto, em tese, é um filme que formalmente se propõe a tudo ver – de trazer tudo contido no plano, no plano sequência, que recusa o corte – na prática, não só é incapaz de se confrontar e registrar a presença física, como tem um pudor incompreensível com o corpo.

A CONCEPÇÃO DE UM “FILME ADULTO”

Toda nudez será escondida, é a ordem da vez. E não são poucas as cenas em que os atores se despem, afinal, nada mais naturalmente animal que isso. Também não são poucas as insinuações de sexo, de toques, e, de certa forma, da consumação de um incesto. É aí que parece estar o esforço de enquadramento e iluminação, milimetricamente pensados para esconder. O ápice vem na luta final, o grande embate entre os homens-lobo, com todos os elementos gráficos (a contraluz da lava do vulcão, a fumaça…) que assumem como função tapar a nudez dos atores.

Mesmo a violência é higienizada, outro contrassenso. A sujeira fica na superfície: na já citada lama, na baba, na poeira, nas cinzas. O sujo de verdade, os fluidos, o sangue, o feio, o tabu, são absorvidos e amenizados pela forma. Seja pelas cores dessaturadas, por um plano aberto demais que impede de ver uma decapitação, ou uma profundidade de campo reduzida que tira o foco de um amontoado de cadáveres. O filme que salta à mente, para efeito de comparação, é O Regresso, do Iñárritu. Por seu virtuosismo vazio e pela brutalidade calculada, sem passar dos limites do aceitável, de um Leonardo DiCaprio comendo carne crua.

Fica a dúvida se essa atitude pudica é uma imposição da indústria ou um problema de concepção do próprio Eggers. Mas, se tem uma coisa que está dada e vem se confirmando com os três longas do diretor é de uma certa domesticação do imaginário pop com a desculpa de uma adultização desses símbolos culturais. A bruxa, os marinheiros e os vikings. Se, nos dois primeiros, o terror e o confinamento ganhavam com a sugestão e os signos visuais (o coelho da fertilidade, o farol como um órgão ereto – por mais fáceis que fossem), no épico, com ecos de tragédia clássica, já não tem imagem que se fixe e arquétipo que se sustente. Muito menos “filme adultinho”, sobre corpos animalescos que matam e transam, que tem vergonha de sangue e sexo.