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O Gabinete das Curiosidades de Guillermo Del Toro | Confira nossa crítica

 

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Ficha Técnica
Título: O Gabinete das Curiosidades de Guillermo Del Toro
Ano de Produção: 2022
Dirigido Por: Jennifer Kent e outros
Estreia: 25 de outubro de 2022
Duração: 8 episódios
Classificação: 18 anos
Gênero: Terror
País de Origem: Estados Unidos
Sinopse: O Gabinete de Curiosidades de Guillermo del Toro é uma série de televisão de streaming de antologia de terror criada por Guillermo del Toro para a Netflix. Apresenta oito histórias de terror modernas nas tradições dos gêneros gótico e Grand Guignol.

 

Os mais recentes trabalhos de Guillermo Del Toro revelam claramente uma busca pela consolidação do nome do diretor como o de uma grife, pela autoproclamação de um autor contemporâneo, respeitado e premiado na indústria cinematográfica. “A Forma Da Água”, vencedor do Oscar de Melhor Filme, buscava repensar os elementos da ficção científica e dos filmes de monstro dos anos 1950 a partir de uma estética dos grandes musicais e do melodrama, ou seja, dos gêneros prestigiados historicamente pela Academia, signos do cinema estadunidense. Na mesma toada, “O Beco do Pesadelo” é uma espécie de remake de um noir de 1947, ambos baseados no livro de mesmo nome, com toda a pompa de filme de Oscar, de design de produção e fotografia vistosos e elegantes.

Nada mais justo que o próximo passo do cineasta seja a série “O Gabinete de Curiosidades”, em que Del Toro se coloca mesmo como um símbolo de legitimidade para os contos da antologia. Um autor que cede seu nome e organiza uma seleção de diretores para dar vida aos contos escolhidos. Com direito à apresentação de Del Toro em cada episódio, algo que lembra o que Hitchcock fazia com a série “Alfred Hitchcock Apresenta”. Também bastante reveladora dessa ideia é a construção da imagem de um Gabinete de Curiosidades. Estes eram lugares reservados em palácios de príncipes ou lordes, quase predecessores dos museus, em que essas figuras exibiam obras de artes, documentos históricos, “provas” de descobertas científicas e curiosidades de todos os tipos. Uma prática que tinha como intuito, justamente, dar prestígio aos donos e organizadores dos gabinetes, que colecionavam as obras e instrumentos e montavam um sentido geral que ligava todas as coisas.

Dessa forma, na série, o diretor mexicano aparece como o símbolo dessa ostentação, revelando seu intelecto e conhecimento artístico, guiando o espectador pelos sentidos ocultos em cada história. Ao mesmo tempo, exibindo seus próprios gostos e fascinações, as inspirações de seu trabalho autoral. Mas, se em um gabinete do tipo, o prestígio da coleção passava para o colecionador, na série o caminho é o contrário. E “O Gabinete das Curiosidades”, apesar de um certo “padrão de qualidade” geral, soa na maior parte do tempo como uma “Mostra Del Toro”, mais sufocada pela vitrine, ou moldura, do autor, do que livre para cada diretor criar obras com valor em si mesmas. Com exceções, é claro.

O primeiro episódio “Lote 36”, provavelmente é o que mais deve a Del Toro, principalmente aos primeiros filmes. Inclusive, é dirigido por Guillermo Navarro, fotógrafo de “O Labirinto do Fauno” e “Cronos”. Um certo realismo fantástico serve como alegoria política para a fascistização estadunidense, com Tim Blake Nelson interpretando um ex-militar racista e xenófobo que compra um depósito anteriormente em posse de um nazista. Navarro tem uma abordagem realista nos cenários e na encenação, interrompida pelo surgimento do sobrenatural, que vai completar o discurso político, assim como em “A Espinha do Diabo”, por exemplo. Baseado em um conto do Del Toro, “Lote 36” é uma síntese derivativa da primeira fase do cineasta.

Enquanto isso, “Ratos de Cemitério”, dirigido por Vincenzo Natali, bebe da literatura gótica. Pode até ser lido como uma metáfora sobre a desigualdade de classes, da riqueza que é acumulada e violentamente defendida mesmo depois da morte, mas serve mais como um exercício de horror claustrofóbico. O cuidado com o design das criaturas e a preferência por maquiagem e efeitos práticos é outra característica de Del Toro que aparece aqui, ainda que o clima artificial, principalmente dos cenários e ratos de CGI, sabote a experiência mais palpável e frontalmente gore que Natali buscava. O terceiro, “A Autópsia”, de David Prior, tem pretensões menos discretas. Mistura de thriller policial com horror sci-fi, está entre os mais brutais dos episódios. É o primeiro que pouco se assemelha ao trabalho do criador da série e, mesmo que se estruture com flashbacks pouco inspirados, tem seus bons momentos quando passa a acompanhar apenas o personagem de F. Murray Abraham.

Já “Por Fora”, o quarto episódio, de fato foge da mesmice dos anteriores. A diretora Ana Lily Amirpour se apropria do conto de Emily Carrol e impõe uma estética própria. Na história, Stacey é uma mulher que se sente deslocada no ambiente de trabalho. Insatisfeita com sua aparência, leva uma vida caseira com hobbies peculiares. Ela fica fascinada por um produto de beleza anunciado em um infomercial da TV, que promete mudar completamente a aparência e autoestima de quem o usar. Mas, Stacey tem uma reação alérgica perigosa. Amirpour filma o conto com um uso predominante de lentes grande-angulares, que deformam o quadro e os objetos filmados. A vida pequeno-burguesa das amigas de trabalho, com papos fúteis e preocupações esteticistas falsas, é assim apresentada desde o princípio com uma estranheza asquerosa. Kate Minucci, que vive a protagonista, completa o panorama bizarro, tanto pelo uso de uma maquiagem sutil, quanto com a ótima atuação de uma pessoa infantilizada e carente. O produto de beleza, como não poderia deixar de ser, causa uma transformação típica do body horror, afetando não só o corpo como o psicológico da personagem. O episódio é, portanto, um corpo estranho, em todos os sentidos.

“O Modelo de Pickman” e “Sonhos na Casa da Bruxa” revelam a influência dos escritos de H.P. Lovecraft nos trabalhos de Del Toro. Ambos com vistosos designs de produção e bons climas misteriosos, mas que não deixam de ser uma diluição dos contos de Lovecraft. O primeiro esconde uma discussão interessante sobre a beleza na arte, sobre a pintura como a representação do real, do que se vê. O diretor Keith Thomas não descarta os aspectos mais grotescos da história, mas perde a oportunidade de transformar essa discussão artística em imagens. Enquanto Catherine Hardwicke, de “Crespúsculo”, diretora do outro episódio, cria uma superprodução de fantasia com Rupert Grint (de “Harry Potter”) e Ismael Cruz Cordova (de “Anéis de Poder”) no elenco. Uma fábula divertida sobre os perigos do luto.

Os dois últimos episódios de “O Gabinete das Curiosidades” são também o auge dessa primeira temporada. Ao menos no sentido de terem vida própria para além das vontades do criador da série. A princípio, “A Inspeção” é quase uma autocrítica para o mesmo tipo de experimento que Del Toro realiza com a produção: um rico colecionador reúne pessoas de mentes brilhantes para mostrar a eles sua nova descoberta, que pode ser perigosa para todos. Mas, na prática, os sentidos ocultos da história pouco importam. Na verdade, o que o diretor Panos Cosmatos faz é se utilizar da estética dos anos 1980 (que voltou a se popularizar na chave da nostalgia recentemente) para criar uma experiência lisérgica. Os sintetizadores da trilha sonora, de inspiração nas trilhas típicas do período, e os cenários e iluminação meio “Blade Runner” dão o tom. Se os personagens embarcam numa viagem com álcool, maconha e cocaína, Cosmatos também tenta engajar o espectador em um ritmo alterado de percepção. Os lentos movimentos de câmera e a fotografia embaçada e cheia de flare demonstram bem isso. É um episódio contido, mas, junto de “Por Fora”, dos mais expressivos visualmente.

Nesse experimento antológico de Del Toro, quem mais confirma seus traços autorais parece ser mesmo Jennifer Kent com “O Murmúrio”. A diretora, que fez seu nome entre os fãs do terror com “O Babadook”, adapta outro dos contos do próprio Del Toro. Mas, o episódio é completamente dela. Kent ajudou a trazer ao cinema mais uma onda do terror contemporâneo: o de filmes que estabelecem um trauma nas personagens que serão a fagulha para o horror sobrenatural (como pontua o crítico Marcelo Miranda neste texto da Revista Abismu). Em “O Múrmurio”, a situação é típica deste tipo de história. Um casal cientista que passou por uma experiência traumática viaja até uma ilha praticamente deserta para observar pássaros. Porém, a casa em que se hospedam parece guardar outras experiências sombrias. Esse trabalho de Kent também soa como uma versão diluída da diretora, mas que não deixa de ser competente e ter seu apelo emocional.

Na busca pelo prestígio autoral, Guillermo Del Toro faz de “O Gabinete das Curiosidades” um apanhado de contos que passeiam pelas influências e subgêneros caros ao diretor. Uma exposição dos interesses e particularidades próprios, a série tem o mesmo selo de qualidade que Del Toro conquistou na carreira, uma respeitabilidade talvez vazia ultimamente, mais preocupada com a grife de bastidores do que com o valor de cada conto apresentado. Os melhores momentos são mesmo aqueles em que os cineastas convidados se desgrudam do criador, trazendo os méritos particulares para a empreitada, em vez de um prestígio forçado de cima para baixo.

 

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