Agradecemos a Zeta Filmes por nos convidar para assistir Misericórdia. Muito obrigado!

Título: Misericórdia |
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Ano de Produção: 2024 |
Dirigido Por: Alain Guiraudie |
Estreia: A ser anunciada |
Duração: 1h 42min |
Classificação: 16 |
Gênero: Comédia, Policial, Drama |
País de Origem: França, Espanha, Portugal |
Sinopse: Retornando a Saint-Martial para o funeral de seu falecido chefe, a estadia de Jérémie com a viúva Martine se desenrola em um desaparecimento, um vizinho ameaçador e as intenções duvidosas de um padre. |
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Misericórdia ganha seu destaque pelos seus temas intimistas, direção significativa e por suas performances sólidas, mas demora um pouco para realmente engatar.
No filme, um homem volta a sua vila de infância para o funeral de um amigo da família, causando problemas novos e fazendo antigos ressurgirem.
Apesar de curto, Misericórdia, propositalmente, leva o seu tempo para demonstrar do que se trata. Seu início procura mostrar quão monótona é a vida na cidade de Saint-Martial, com o protagonista, Jérémie, chegando de carro na vila em silêncio, com a câmera filmando apenas a visão de seu ponto de vista. A ausência de sons dentro do carro, misturada com as paisagens melancólicas passando e as casas e prédios antigos da cidade já causam um desconforto no espectador, mesmo antes de qualquer palavra ser dita. Esse desconforto continua durante todo o filme, mas de maneiras diferentes, seguindo os sentimentos de seu protagonista e com suas relações com os moradores de Saint-Martial.
O ponto mais forte do filme são os seus temas. Conforme sua história se desenrola, a melancolia da cidade vai se mostrando como algo que é quase proposital. Os moradores da vila procuram não demonstrar os seus verdadeiros pensamentos para os outros como uma maneira de evitar discussões e continuar a “paz” do pequeno vilarejo. Essa situação muda com a chegada de Jérémie. A presença do homem faz com que os seus antigos conhecidos quebrem o seu acordo não-dito e comecem a quebrar suas respectivas fachadas. Esses pontos levam a discussões interessantes sobre o que a pessoa é por dentro e como ela decide se demonstrar ao mundo, principalmente no contexto do homossexualismo, já que o filme foca bastante na masculinidade dos seus personagens homens.
Cama de gato
A temática se demonstra perfeitamente quando se analisa a sua história e conceito. Jérémie chega na sua vila de infância porque um amigo, um padeiro que o empregou na sua adolescência, morreu. Ele reencontra a viúva do padeiro, Martine, e o filho deles Vincent, que era amigo de Jérémie antes dele sair da cidade. Martine insiste que o Jérémie fique na casa deles enquanto está na cidade e, apesar de recusar inicialmente, concorda em ficar dormindo no antigo quarto que Vincent ficava antes de se casar e ter um filho. Vincent, primeiramente, parece estar raivoso com o recém-chegado por parecer estar substituindo-o como filho para a viúva, mas, na verdade, descobre-se que ele suspeita que Jérémie quer, na verdade, se tornar seu padrasto. Martine também suspeita de Jérémie, mas não por ela, mas sim de que ele estava apaixonado pelo seu falecido marido. Enquanto isso, Jérémie fica interessado no melhor amigo de Vincent, o solitário Walter, que não sai muito de casa e se gaba por não ser tão ávido como o resto do grupo. Adicionando a isso tudo, Vincent começa a lutar fisicamente com Jérémie por causa de suas suspeitas errôneas, em cenas de briga bem amadoras que enfatizam um pouco de homoerotismo não-intencional entre os dois. Até o padre da cidade, Phillippe, entra no meio dessa novela mexicana, com as suas procuras matinais por cogumelos para suas refeições sendo desculpas para se encontrar com o recém-chegado. Há uma tentativa do filme de fazer o espectador se perguntar com quem Jérémie ficará no final da trama, mas essa não é a verdadeira intenção dessa cama de gato. O objetivo principal parece ser mais o foco nas emoções reprimidas de cada personagem e como a morte de um membro importante dessa pacata vila francesa e a chegada de Jérémie os deixou menos preocupados em manter o status quo dela. Essa trama fica mais intrigante depois que ocorre um assassinato na vila e as emoções do grupo todo ficam mais à tona. A simbologia dos cogumelos na trama também é um destaque, já que eles não só o passatempo do padre, mas servem como pista falsa à resolução do filme e chamam atenção pelo seu formato fálico, que se conecta aos temas de masculinidade frágil da obra.
Protagonismo na tela
A direção do filme tem uma personalidade interessante. Conforme Jérémie usa e abusa das pessoas ao seu redor, a câmera sempre procura distanciar ou aproximar as suas relações. Planos que envolvem Jérémie e Vincent, por exemplo, normalmente os colocam em lados opostos da tela ou em planos singulares, com suas conversas sendo mostradas em plano e contraplano, só sendo quebradas quando os dois brigam. Cenas entre o protagonista e seu interesse amoroso Walter também são singulares, em sua maioria, mas elas acontecem com um zoom nos rostos dos dois, imitando o foco de Jérémie em Walter, algo que só ele tem. Em contrapartida, quando Jérémie está na tela com Martine, o plano quase sempre tem os dois bem juntos no centro da tela, menos à mesa, onde ocorrem as discussões entre os dois. O plano que mais estabelece essa tendência é quando o protagonista interage com o padre. Até certo momento do filme, os dois não contracenavam tanto o mesmo plano, até uma cena que envolve um confessionário, em que os dois estão separados não só por ele, mas pela câmera, com cada um de um lado do plano, enquanto há alguns cortes de ponto de vista entre os dois, com faces vistas pelas janelinhas do lugar. Como se pode ver, o diretor Alain Guiraudie colocou todo o seu foco nas relações do protagonista com os moradores de Saint-Martial em seus planos, deixando o seu aspecto como thriller erótico mais pela tela do que pelo diálogo.
Falando no roteiro, ele é bem usual. As partes interessantes dele vêm, como no resto do filme, quando os personagens claramente querem dizer algo, mas usam eufemismos ou palavras mais amenas para dizer. No diálogo também é onde se encontra mais da comédia do filme, apesar de ele ter algumas situações não-verbais bem cômicas. O roteiro, em si, existe mais em prol do resto do filme, como a direção e as performances.
No caso das performances, os atores estão bem no filme, com destaque principal ao protagonista. Os moradores da vila são bem atuados, apesar de não serem performances tão grandes, focando, assim como no roteiro, nas sutilezas do que não está sendo dito em cada cena. Catherine Frot e Jean-Baptiste Durand, que fazem, respectivamente, Martine e Vincent, são algumas das atuações mais bem-feitas e importantes do filme, com Durand indo de amor ao ódio com Jérémie em questão de segundos e Frot elevando o ar de uma pobre viúva tentando seguir a vida com algumas segundas intenções. Entretanto, Félix Kysyl entrega Jérémie com maestria, conseguindo mostrar toda passível inocência do personagem conforme a trama vai se desenrolando. As verdadeiras intenções de Jérémie vão se mostrando aos poucos para cada personagem e Kysyl consegue passar todas elas perfeitamente.
Um pouco lento
Entretanto, Misericórdia, às vezes, se perde em sua própria trama e perde muito tempo insistindo em informações já óbvias ao espectador. O filme tem 104 minutos, mas com certeza ficaria melhor com 10 minutos a menos, já que existem alguns diálogos e cenas que ficam um pouco longas. Além disso, algumas das repetições da vila são necessárias ao filme para demonstrar a sua monotonia, mas, algumas vezes, ele é efetivo demais, levando a si próprio esse aspecto. A história também leva um pouco para realmente ir a algum lugar, com uma boa parte do início do filme só focada nas conversas do protagonista com as figuras da vila. Apenas em seu meio que o incidente principal do filme ocorre e a trama começa. A mistura de gêneros que o filme tenta fazer só é aparente mesmo em seu meio, já que é o incidente é o principal aspecto que corrobora com essa mistura. Os diálogos são divertidos e os personagens interessantes, mas percebe-se uma falta de um objetivo específico no filme até o seu meio.
Por fim, Misericórdia é um filme que demora a atingir o seu real potencial, mas não desaponta e entrega um ótimo thriller erótico em um ano com outros muito bons. Com seus elementos de crime mistério, ele até pode ser uma antítese de Motel Destino, outro filme similar que saiu esse ano, trocando o clima quente do Ceará pelas florestas frias do sul da França. O filme se desenrola muito bem e consegue fazer o espectador questionar quem dos personagens é realmente o que diz ser, sendo o protagonista Jérémie o que mais intriga, as vezes até sendo um narrador não confiável. Alain Guiraudie entrega uma obra que divide momentos de novela das nove com cenas de romance policial, o que não deixa o espectador confortável com nenhuma das conversas mostradas, levando ao clima tranquilo e melancólico da cidade de Saint-Martial um ar de mistério. Assim sendo, Misericórdia é um ótimo filme de seu gênero em um ano cheio deles.
Nota:
