Era Uma Vez Um Gênio | Confira nossa crítica

"Era Uma Vez Um Gênio", de Geroge Miller, diretor de "Mad Max: Estrada da Fúria", é uma fantasia sobre histórias e desejos. Confira!
Era uma Vez Um Gênio
Ficha Técnica
Título: Era Uma Vez Um Gênio (Three Thousand Years of Longing)
Ano de Produção: 2022
Dirigido Por: George Miller
Estreia: 1 de setembro de 2022
Duração: 1h 48min
Classificação: 16 anos
Gênero: Fantasia/Drama
País de Origem: EUA e Austrália
Sinopse: Uma acadêmica encontra um gênio que lhe oferece três desejos em troca de sua liberdade.

 

Depois de fazer “Mad Max: Estrada da Fúria”, quarto capítulo de uma franquia que, pode-se argumentar, está muito mais ligada a um cinema de atrações – ou seja, a concepção de um primeiro cinema, dos Lumière e Georges Méliès, menos preocupado em contar uma história do que com uma capacidade de fascinação pelas imagens em movimento, pela magia dos efeitos especiais e truques – com “Era Uma Vez Um Gênio” (2022), George Miller se apropria de uma tradição muito mais antiga: a da oralidade, da fabulação. E faz da narrativa falada o princípio estrutural do filme e seu objeto. Pensando e exercendo a aptidão para o encantamento que as histórias podem ter.

Alithea Binnie (Tilda Swinton) é uma acadêmica solitária que viaja à Istambul para dar uma palestra sobre narratologia. Lá, encontra uma garrafa e, sem querer, liberta um djinn, um gênio da lâmpada, que implora para que ela faça os três desejos que tem direito para impedir que ele fique para sempre esquecido e preso no nosso mundo. A maior parte do filme se passa no quarto de hotel, com o djinn (Idris Elba) tentando convencê-la. Os argumentos de ambos, para fazer ou não os três pedidos, vêm de seus conhecimentos, de suas experiências. Portanto, de suas histórias. Está posta a estrutura do filme, uma série de flashbacks que tomam corpo a partir da narração dos personagens. Uma contação de história que se torna visual através da imagem do cinema.

São contrapostas duas visões distintas sobre a fabulação. De um lado, a acadêmica interpretada por Tilda Swinton vê as histórias como contos de advertência, o lado moral dos mitos que descrevem os perigos que os ouvintes, leitores ou público devem evitar. O passado da personagem atesta sobre essa visão, de quando uma aventura romântica se torna um trauma. Já o gênio (e ter Idris Elba seminu durante toda a projeção ajuda nessa argumentação) defende e representa as histórias como um canto de sereia, uma sedução. Somos tragados pelas histórias, ficamos fascinados, apaixonados. Como o passado narrado do djinn confirma, elas são fontes de amor, de cultura, de conhecimento. Contar um caso pode criar guerras e traições, mas pode apaziguar o coração dos mais cruéis assassinos. O filme vai trabalhar nessa relação quase dialética entre as duas visões, como uma sendo necessária para a outra existir. Sem aventuras e paixões não há perigos e problemas. Sem perigos e problemas não há histórias para contar e, portanto, não há vida para viver e relembrar.

Era Uma Vez Um Gênio

O estilo expansivo de George Miller é a confirmação da sedução inescapável das boas narrativas. Cada uma das lembranças do gênio, que se estendem por um período de três mil anos, servem como um feitiço, um encantamento da percepção. Mais do que uma fidelidade histórica ou uma diferenciação entre as épocas, o que o diretor busca é mesmo uma unidade de arrebatamento e fascínio. Também porque estão ligadas à subjetividade do djinn, inclusive com diversos planos subjetivos, esse ser de visão romântica do mundo e das histórias. As cores são saturadas, fortes vermelhos, dourados, rosas e verdes. Cada plano superdetalhado, com composições elegantes, que permitem que as narrativas sejam simples e diretas ao basear as relações entre os personagens e os significados das situações a partir dos visuais. Em como a iluminação ou falta dela cria um certo clima; em como a disposição dos atores nos ambientes demonstram suas características e status; em como os objetos e peças dos cenários se tornam signos da moral de cada conto. O plano é a superfície de fascinação e beleza, de minúcias e texturas: os panos, os reflexos e vidros, o pó das superfícies. Mas, sem nunca passar essa extravagância para a narrativa em si.

Mesmo com movimentos de câmera suntuosos, o centro da encenação de Miller é sempre muito claro, resolve cada cena em dois ou três planos. Um exemplo: A concubina Gülten está obstinada a pedir ao djinn para engravidar do príncipe Mustafa. A cena acontece na junção de dois corredores e com apenas um travelling lateral. O plano começa com o djinn encostado na parede, comendo o fogo de um candelabro. A câmera continua indo para a direita, onde encontra Gülten, que faz o pedido ao gênio sem que este a apoie. Fim do plano e da cena. Toda a grandiosidade dos cenários e figurinos, os designs criativos das criaturas e magias, os detalhes surpreendentes dos objetos, personagens e da mitologia fantasiosa, são como uma garrafa ornamentada que guarda um elixir doce, mas puro e simples. A forma que Miller encontrou para manter o encantamento das fábulas e também o aspecto da inocência, da clareza e sinceridade das narrativas e de suas morais.

E é muito diferente falar de inocência e de infantilidade (ainda que não seria um problema se o filme se assumisse como um conto infantil). Mas, “Era Uma Vez Um Gênio” é a obra de um cineasta maduro, que pensa em seu trabalho como narrador e nas repercussões que essa função carrega na vida madura. A palavra “desejo” faz parte do vocabulário dos contos e traz uma outra camada para o filme. Um desejo íntimo pode ser, por exemplo, o de reaver um filho perdido, ou pelo amor de uma pessoa. As histórias são movidas pelos desejos, inclusive sexual. Ou, talvez, numa leitura mais lacaniana, a linguagem, a oralidade, o contar uma história, são essenciais para reconstruir o inconsciente e os desejos. As três histórias vividas pelo gênio, transformadas em imagens pelo filme, envolvem a atração sexual. E mais, o desejo de que o outro me deseje, o que inclui aí o trauma de Alithea e a solução para o conflito com o djinn. Além de ser atrativa, a narração é criada pela atração e também criadora dela.

Era Uma Vez Um Gênio

O filme vai exibir essas diversas formas de ímpetos e quereres, de pulsões de morte e sexuais, como a contraposição entre os assassinatos cometidos pelo príncipe Murad e a busca de Ibrahim pelas concubinas que mais o atraem. “Ele acredita que quanto maior a extensão da carne, mais intenso o prazer”, conta a narração de Idris Elba. Mas, para além dessas exibições mais claras de excitação, Miller mobiliza outra ferramenta que também compõe essa ideia: o CGI. Assumidamente falsos, ou melhor, com uma proposta oposta ao do hiper-realismo que dominou a indústria, os efeitos visuais de “Era Uma Vez Um Gênio” se assumem como parte da visão romântica, estilizada e extravagante do mundo fantasioso. E, junto com todos os elementos visuais e sonoros, como uma fonte de sedução, inclusive simbólica.

“O amor não é algo a que chegamos pela razão. É mais como um vapor, talvez um sonho, para nos atrair para o encanto de nossas próprias histórias”, diz Alithea em determinado momento. O mundo em que ela vive, o nosso mundo, é solitário, cinza. Miller inclusive coloca a pandemia de covid como um fato dentro do filme. Enquanto as representações das memórias do gênio são hipnóticas, atraem quem assiste para dentro dela, como um sonho, o quarto de hotel é sem vida. Os enquadramentos são acadêmicos, frios. De volta à Inglaterra, Alithea aparece centralizada no quadro, dentro de um vagão de metrô, sem ninguém do lado. O plano da cafeteria mostra ela deslocada, separada da rua por um vidro, com cartazes num pilar demonstrando o caos político da realidade. Se nas bordas da tela antes estavam detalhes encantadores, na cidade vemos moradores de rua e tristeza.

É a presença do gênio que traz os vapores do encantamento, bem literalmente inclusive. O CGI também serve a esses detalhes, aos veios brilhantes na pele de Idris Elba, à fumaça mística que percorre a tela fazendo a ligação entre o quarto do hotel e os ambientes fantásticos dos contos. À poeira cósmica, magnética, que desprende do gênio. Depois de uma noite de realização do desejo, o sol brilha na janela com um laranja saturado, pela primeira vez no lado “real” da narrativa, como a sedução escapando das histórias para o mundo. Ou seja, fiel à lógica da inocência das fábulas, o diretor usa do encantamento para encenar as vontades, mesmo que sexuais, para além do físico.

Era Uma Vez Um Gênio

Seguindo a ideia de clareza e simplicidade morais da fábula, assim como a estrutura de contos curtos e diretos, quando o filme chega na síntese entre os mundos reais e fantásticos, ele se torna mais frágil do que realmente se propunha. Os constantes fades no ato final dão uma sensação fugidia, de interrupção e falta de acabamento. Assim como a discussão sobre o estado da Europa Ocidental pós-Brexit, crise dos refugiados, ascensão da extrema direita e pandemia. A solução é, como todo o filme, romântica, mas aqui mais passível de críticas à inocência apaziguadora. Porém é inegável a esperança que surge dessa inocência, a visão complexa mas otimista do mundo e de suas conquistas e descobertas. Com o fantástico se contrapondo, ou melhor, integrando-se com a ciência.

Na única palestra de Alithea que vemos, no início de “Era Uma Vez Um Gênio”, a narratóloga discursa sobre como os mitos, que se transformaram em quadrinhos e histórias de super-heróis, estão desaparecendo e cedendo lugar à tecnologia. Ela vê, na plateia, um espectro, de visual medieval, que grita em discordância a essa última afirmação. George Miller fez um filme que atesta que a afirmação pode ser verdade, mas que num mundo do capitalismo tardio, cada vez mais individualizante, alienante e solitário, navegar é preciso, viver histórias é preciso, contar histórias é preciso. Ainda que viver, justamente, não tenha nada de preciso. É um conto de advertência, afinal, mas são eles que relembramos quando estamos sozinhos. É a esse encantamento – perigoso e sedutor, mas que forma quem somos e permite que continuemos a viver – que podemos recorrer quando precisamos.

Numa nota mais pessoal: terminei de assistir ao filme e abri o Twitter. Lá, vi que num debate político, que eu não sabia que tinha acontecido, um deputado, que eu não conhecia, tinha atacado uma jornalista. Eu não sei se o mundo está muito difícil de viver ultimamente, mas a minha vontade era de imediatamente desligar o celular e rever o filme. Perder-se nessas histórias e aceitar a visão romântica do mundo, às vezes, é realmente se proteger e ignorar os horrores lá fora. Em última instância, o elixir doce da garrafa ornamentada pode de fato ser um ótimo remédio.

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