Lançado em outubro de 2024, “Orbe: Sobre os Movimentos da Terra” (Chi: Chikyū no Undō ni Tsuite) é uma adaptação do mangá homônimo escrito e ilustrado por Uoto. Apesar de ter sido ofuscado por outros grandes lançamentos da temporada, como Blue Lock e Dan Da Dan, merece destaque por sua profundidade filosófica e científica. Ambientado em uma Europa medieval fictícia do século XV, o anime combina elementos históricos com uma narrativa envolvente que explora a busca pela verdade científica, portanto voltado para o público adulto (seinen), em um período de intensas restrições ideológicas provindas da igreja.
Filosofia e Ciência em Conflito com Dogmas Religiosos
A obra aborda temas como a luta pela verdade científica, o confronto com dogmas religiosos e o papel da fé, do humanismo e da ética diante do extremismo. A busca pela prova da teoria heliocêntrica, em um mundo que aparentemente acreditava firmemente no geocentrismo, é o cerne da narrativa. Personagens como Rafal exemplificam a tensão entre a razão e a vida confortável, mostrando a coragem de abraçar o conhecimento, mesmo que isso signifique enfrentar a morte. A cena de seu sacrifício é de longe uma das mais belas e bens construídas do anime, a morte dele remonta a passagem de pelo menos três grandes pensadores: Giordano Bruno, Sócrates e Sêneca.
Primeiramente a maneira que ele se impõe remete à morte “escandalosa” de Giordano Bruno por não voltar atrás em suas ideias, inclusive rasgando o acordo de sua retratação perante todos no tribunal. Muitos astrônomos se retrataram após a perseguição da igreja, tal como Galileu, todavia neste momento o anime já está em uma reviravolta (uma de muitas).
Posteriormente o personagem passa a refletir sobre a sua posição como ser racional que teria escolhido a morte. Essa posição remonta à discussão socrática de que a verdade é algo maior do que nós e, portanto, sua morte valeria a pena. Enfim, Rafal encontra no estoicismo e na figura de Sêneca a tranquilidade da morte, crente que fez a decisão certa em uma cena que remete ao diálogo de Fédon, obra em que Sócrates discute a vida após a morte na prisão de Atenas com retoques da filosofia de Sêneca e sua tranquilidade.
Uma Animação de Qualidade e Personagens Bem Construídos
Desde o início, Orbe impressiona pela sua animação belíssima. Os cenários, principalmente do céu, são visualmente impactantes, mantendo um padrão elevado ao longo de toda a série. Os personagens principais são bem desenvolvidos, com arcos narrativos que exploram muito bem suas transformações ao longo do tempo. A trama se desvia da típica estrutura de seguir um único protagonista, introduzindo novos personagens em diferentes períodos, apesar destes serem relativamente próximos, sempre mantendo o foco na discussão entre geocentrismo e heliocentrismo. Vale complementar que as aberturas instigam a curiosidade do espectador, à medida que vão mudando com as trocas de protagonistas.
A estética deslumbrante casa com a discussão acerca da beleza da racionalidade: a verdade é bela? A primeira rejeição feita pela criança Rafal do modelo de Ptolomeu critica o reajuste do movimento dos planetas (errantes) e, portanto, para ele “[essa] teoria não parece racional, neste sentido, [o modelo] não é muito belo”. Essa discussão é retomada de maneira sutil posteriormente com um possível discurso diluído de Leibniz sobre vivermos no “melhor e mais racional dos mundos possíveis”.
Em um mundo onde o acesso ao conhecimento era restrito e controlado, os personagens se tornam figuras cruciais na luta pela liberdade intelectual e pela preservação do saber. A coragem e visão crítica inspiram outros a questionar as normas estabelecidas e a buscar a verdade, mostrando que o conhecimento é uma ferramenta poderosa de transformação e resistência.
Jolenta: Voz da Liberdade e do Saber em Tempos de Repressão
As poucas personagens femininas têm um papel memorável em “Orbe”, em especial Jolenta que se destaca por sua coragem e visão crítica em um contexto medieval dominado pela igreja e repressão ao conhecimento. Ela, assim como os outros protagonistas, representa a transgressão e a resistência, desafiando as normas estabelecidas para buscar a verdade e a liberdade intelectual.
Jolenta é filha do vilão Nowak e teve sua criação pautada pelos dogmas da igreja, apesar disso adotou uma disposição científica de estudos, resolvendo prontamente questões levantadas pelos coprotagonistas Badeni e Oczy. Por ser mulher, seus textos eram roubados constantemente por um homem com o argumento que ela não poderia assiná-los, visto que para a sociedade da época as mulheres eram inferiorizadas e acusadas de bruxaria caso se envolvessem com assuntos científicos. Fazendo uma ponte com o presente, podemos refletir quais seriam as expectativas sociais da mulher hoje: ser mãe, cuidar da casa, servir a família, e como isso impede a ocupação de espaços sociais e acadêmicos. Além disso, vale refletir também quantas mulheres na história podem ter desenvolvido pesquisas e teses e não tiveram o reconhecimento devido ou foram apropriadas por homens.
A fala da personagem sobre a leitura e a escrita como dádivas e quase milagres é profunda e inspiradora. Ela reconhece que a capacidade de ler e escrever permite a comunicação com os outros e a transmissão de ideias para as gerações futuras, estabelecendo uma conexão entre o passado, o presente e o futuro. Essa perspectiva destaca o poder das palavras em atravessar o tempo e o espaço, permitindo que as ideias permaneçam vivas mesmo após a partida de seus autores.
Trilha Sonora que Complementa a Atmosfera
A trilha sonora de “Orbe” é tão impressionante quanto sua animação. Composta por Kensuke Ushio, a música complementa perfeitamente a atmosfera do anime, intensificando as emoções transmitidas pelas cenas, intercalando com momentos de silêncio bem colocados em momentos de tensão. A colaboração com bandas como Sakanaction e Yorushika nos temas de abertura e encerramento adiciona uma camada extra de profundidade à experiência auditiva.
Pontos a Melhorar
Apesar de suas qualidades, o anime apresenta alguns pontos que poderiam ser aprimorados. A obra retrata o vilão de forma estereotipada, perseguindo os protagonistas de forma repetitiva em praticamente todos os arcos. Além disso, os personagens percorrem os cenários como se usassem “teletransporte”, recurso que poderia se integrar melhor à narrativa com explicações simples sobre o deslocamento, evitando confusões.
Os últimos arcos perdem força em comparação com os primeiros, dando finais para personagens importantes de forma questionável e trazendo elementos que mais parecem “manivelas de roteiro” do que algo coerente com a situação. O desfecho da história, apesar de ser emocionante, também deixa um pouco a desejar por se utilizar de uma filosofia desmedida, contrariando o acerto filosófico contido no anime.
Conclusão
“Orbe: Sobre os Movimentos da Terra” é uma obra que merece reconhecimento por sua profundidade temática, citações filosóficas e excelência técnica. Ao explorar a luta pela verdade científica em um período de intensas restrições ideológicas, o anime oferece uma reflexão sobre a importância do conhecimento e da coragem para desafiar dogmas estabelecidos. Sua animação de qualidade, personagens bem construídos e trilha sonora envolvente fazem dele uma experiência imperdível para os apreciadores de histórias que desafiam o pensamento convencional.
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