Blonde | Confira nossa crítica

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Ficha Técnica
Título: Blonde
Ano de Produção: 2022
Dirigido Por: Andrew Dominik
Estreia: 16 de setembro de 2022
Duração: 2h46min
Classificação: 18 anos
Gênero: Drama
País de Origem: Estados Unidos
Sinopse: Uma releitura ousada da vida de Marilyn Monroe, um dos ícones mais famosos de Hollywood. Desde sua infância tumultuada até sua ascensão meteórica.

 

Das sinopses à campanha publicitária e ao filme em si, tudo que envolve “Blonde” tenta explicitar o fato de que esta não é uma cinebiografia. É uma reimaginação ficcional da vida de Marilyn Monroe. Que se pergunta como seria possível capturar a vida privada, a “realidade”, de uma figura que é pura imagem, uma lenda construída e idealizada de fora para dentro. Um símbolo mor de sexualidade, ainda que velada, eternizada em película, em calendários sensuais e capas de revistas. Uma figura inumana, até. A resposta a que o diretor Andrew Dominik chega parece, à princípio, bem sincera: não há como capturar.

A identidade de Marilyn foi criada pelos olhos e para os olhos de homens. Dentro de um mundo e de uma indústria misógina e patriarcal. “Blonde” é fruto desse mesmo olhar (como o é essa crítica, também escrita por um homem). Este é um problema que o cinema sempre se encarregou de tratar: como o outro, a mulher, é inalcançável pelo olhar masculino. Exemplo melhor disso é “Um Corpo que Cai”, de Alfred Hitchcock. Nele, John Ferguson (James Stewart), fica tão fascinado pela imagem de uma mulher, que se torna obstinado a reconstruir essa imagem em outra. O que ele não sabe é que Madeleine (Kim Novak) já é uma imitação. Ela é, na verdade, Judy, que personifica Madeleine como o símbolo feminino máximo, misteriosa e apaixonante, criada por outro homem. Assim como Norma Jeane, nome verdadeiro de Marilyn, assumiu a imagem criada pra ela por outros homens: Marilyn Monroe.

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Enquanto Hitchcock, em “Um Corpo que Cai”, revela as maquinações cinematográficas que criam essas falsas figuras femininas, Andrew Dominik se encontra afundado na mesma vertigem das imagens do personagem de James Stewart. Da posição que ocupa, sem possibilidade de se relacionar com a verdadeira alteridade feminina, mas fascinado por ela, a saída que ele encontra é suprimir ainda mais a mulher por trás do mito. Fazer com que Marilyn exista como pura imagem, presa no mundo em que a ficção e a realidade, o público e o privado, o são e o insano se confundem. Em “Blonde”, a personagem é privada de história, de vontades, de escolha. Seu grande traço de personalidade é o daddy issue, ou seja, definida desde a infância pela falta da figura masculina. Não há espaço para a existência de Norma Jeane, só para Marilyn Monroe, idealizada, santificada. Nesse sentido, “Blonde” é o anti-Brian De Palma.

Em “Dublê de Corpo”, De Palma revisita as discussões de “Um Corpo que Cai”, mas, em vez da construção feminina do cinema clássico, do star system, faz isso a partir da paranoia e da pornografia. Na modernidade, a idealização romântica se torna fetiche consumista e o cinema se iguala ao pornô. A mulher que se passa por outra em “Dublê de Corpo” é uma atriz pornográfica, o museu com o quadro que Madeleine se utilizou como base para sua personagem se torna um strip-tease numa janela. De Palma dessacraliza o estrelato e o cinema clássico, já Dominik sacraliza e transforma a vida de Marilyn Monroe numa via crucis. A fuga do mundo explorador e fetichista se dá pelo sofrimento do corpo, a ascensão divina que expia os pecados.

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Por isso “Blonde” tem sido classificado como um filme exploitation com todo o aparato formal de um cinema “de arte”, de um preciosismo técnico. A narrativa do filme é elíptica, cheia de saltos no tempo, pulando entre diversas formas de abusos sofridos por Marilyn. A nudez da atriz Ana de Armas está sempre presente, assim como o sexo e as já polêmicas cenas que envolvem o aborto. Mas, em vez da aproximação com o cinema pornô feita por Brian de Palma, aqui não há sensualidade ou erotismo. O corpo é, seguindo uma ideia bem cristã, um receptáculo de pecado, que precisa sofrer, passar por provações, para que haja a purgação. Se há um olhar fetichista, é mais pela tortura do que pelo sexo.

Dominik constrói o filme como uma prisão vertiginosa de imagens cinematográficas, em que o tempo e o espaço nunca são claros e definidos. As cenas parecem se repetir. Um plano que começa dentro de um avião se desloca para dentro de um cinema, sem cortes. Não há realidade palpável; o mundo de Monroe é sempre uma fantasia aterrorizante. Ana de Armas é repetidas vezes enquadrada num close, ou com uma profundidade de campo extremamente reduzida, borrando o cenário e oprimindo a atriz no centro do quadro, ou com o contraste da fotografia em preto-e-branco explorando uma bidimensionalidade do plano. Os focos de luz clara, que são ao mesmo tempo um holofote da fama e um brilho divino, perseguem e aprisionam a personagem.

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Esses elementos formais, incluindo o vai-e-vem das cores e da mudança de proporção de tela, existem para martelar a natureza cinematográfica do que se vê. Dominik acredita que a única realidade em que Marilyn Monroe existe é a realidade fílmica. Porém, todo esse preciosismo técnico resulta numa experiência alienante. Se o filme tenta explicitar a misoginia, torturando a protagonista com sofrimento e abuso, não há senso de denúncia ou reprovação. Neste caso, o olhar masculino santifica e martiriza de longe, devidamente afastado e protegido. Sem ser provocado ou ferido no processo. A religião e a arte, historicamente, puderam exercer um papel de meio para uma “catarse”. Daí o sofrimento de Cristo ou de Édipo serem sacrifícios que limpavam os pecados do crente ou do espectador da tragédia. Dominik quer se apropriar dos closes em Ana de Armas como os de uma Joana D’Arc contemporânea, mas se aproxima mais de um escrutínio científico, de assistir a uma cobaia através de um microscópio.

O que essa embalagem “artística” e preciosista esconde é uma variedade de ideias ruins, mal-acabadas ou obviedades sobre a sexualidade e a opressão de gênero. Os primeiros minutos de “Blonde”, com a infância da protagonista e a doença da mãe, talvez sejam os piores nessa equação entre um “bom-gosto” da linguagem cinematográfica e um proposital “mau-gosto” das imagens que retrata. O incêndio de Los Angeles usado como contraluz e as cinzas de CGI para criar um clima onírico, enquanto os movimentos de câmera são precisos e elegantes dentro do carro, tornam-se exemplares perfeitos da autoseriedade banal que esse tipo de projeto costuma representar. Já a tentativa de patologizar a ausência do pai nos relacionamentos abusivos nunca sai de uma brincadeira de duplo sentido da palavra “daddy”, ao mesmo tempo paternal e apelido sexual. Num filme que parece achar genial ilustrar o machismo com a imagem de homens com bocas deformadas gritando para Marilyn como seres bestiais, bons momentos como a sequência que envolve o caso da atriz com o presidente JFK acabam se perdendo em quase três horas de bobagens.

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Talvez seja importante salientar como o olhar masculino, mesmo que possa ser inerentemente machista, também é capaz de trazer reflexões consideráveis sobre relações de gênero e sexuais. Para ficar num terceiro e último exemplo de um cineasta homem que contribui para o debate, é possível citar Paul Verhoeven, diretor em cujos filmes também circulam imagens de abusos e estupros. Verhoeven enxerga o sexo como uma relação de poder, sempre com um dos lados exercendo seu controle sobre o outro. Diversas críticas e teóricas feministas já se dispuseram a comentar como o diretor continuamente inverte a relação de gênero, com as mulheres se apropriando da arma que é o sexo, normalmente masculina, para se impor sobre os homens. Como é o caso da personagem de Sharon Stone, em “Instinto Selvagem”, e a famosa cena do interrogatório. A velha máxima do cinema, já batida, continua valendo. A questão não é o que se mostra, mas como e por quê.

Pelo menos Dominik tem o bom senso de deixar Ana de Armas fazer seu show, com planos mais longos que assistem à atriz incorporando completamente Marilyn Monroe. Dos olhos expressivos, o sorriso, os trejeitos e o trabalho corporal, mais do que uma imitação, são mesmo a transformação de uma atriz em outra. É por causa dela que Monroe tem algum resquício de existência no filme, de alma condenada presa no corpo sexualizado. Incapaz de ser livre, de encenar Tchekhov, de decidir seu próprio destino. Mais do que a impossibilidade de Marilyn Monroe existir para além da imagem cinematográfica, de Armas, provavelmente apesar de Dominik, consegue fazer com que ela exista em seu próprio corpo.

“Blonde” é um filme perdido na tentativa vertiginosa de apreender a realidade de uma pessoa que é só imagem. Pessoa que o diretor Andrew Dominik sacraliza e faz passar por todo tipo de provação num esteticismo barato que provavelmente é a pior forma de  compreender Marilyn Monroe nem que seja como símbolo. Um filme que tem pouco a dizer sobre a atriz e menos ainda sobre o mundo machista que a criou e aprisionou. Mas, Ana de Armas consegue provar que é justamente apesar dos homens que uma Marilyn Monroe pode existir.

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